A teoria da justiça de John Rawls

John Rawls, o mais conhecido e celebrado filósofo político norte-americano, falecido aos 81 anos, em 2002, é tido como o principal teórico da democracia liberal dos dias de hoje. O seu grande tratado jurídio-político A Teoria da Justiça, de 1971, o alinhou entre os grandes pensadores sociais do século 20. Um legítimo sucessor de uma linhagem ideológica que origina-se em Locke. Os temas que hoje provocam polêmica, tal como o sistema de cotas para os negros nas universidades e nos cargos públicos, deriva diretamente da concepção de sociedade justa estabelecida por Rawls.

Johnson imita Lincoln

Para assinar o Voting Right Act de 1965, a lei que dava direitos iguais aos afro-americanos de votarem, o presidente Lyndon Johnson (1963-69) fez questão de cumprir a cerimônia na mesma sala da Casa Branca em que, um século antes dele, o presidente Lincoln, emancipara os negros que haviam servido no exército confederado. Com o fim dos constrangimentos legais que impediam dos negros serem cidadãos nos estados do Sul, completava-se assim uma etapa importante da Civil Rights Bill, aprovada pelo Congresso norte-americano um ano antes , em 1964. O objetivo da lei era claro, promover a integração racial e por um fim às práticas cotidianas discriminatórias que, especialmente no antigo cinturão confederado, estimulavam a segregação racial (motivo central da campanha pelos Direitos Civis do reverendo Martin Luther King). Com isso, esperava-se também por um término aos motins urbanos da população negra do Harlem, do Bedford-Stuyvesant em Nova Iorque, e os tumultos de Watts, em Los Angeles, de 1964-5, que deram prejuízos imensos aos negócios locais.

A nova lei do voto, ao remover as proibições para os negros exercerem seus direitos de cidadãos, procurou isolar os segregacionistas do Sul, tal como o governador George Wallace do Alabama, e igualmente esvaziar o movimento Black-power, liderado por Stokely Carmichael, um jovem intelectual negro radicalizado que anteriormente fora um dos líderes do SNCC (Student Nonviolent Coordinanting Committee). A política de promover a integração racial, por sua vez, fazia parte de um dos programas da chamada Great Society, a Grande Sociedade, o espetacular projeto dos democratas que visava extirpar a pobreza nos Estados Unidos. Atendendo a que, como disse o presidente Johnson, a América se transformasse " Num lugar onde os homens estarão mais atentos com a sua qualidade de vida do que com a quantidade de bens". Ele, o projeto, assentava-se no tripé de promover a mais ampla liberdade para todos, combater a escandalosa pobreza e, por fim, terminar com a injustiça racial.

Certa vez, Hegel escreveu que a Filosofia - tal como a coruja que só alça o vôo depois do entardecer - somente elabora uma teoria após as coisas terem ocorrido. Foi bem esse o caso da contribuição de John Rawls, surgida em livro em 1971, A Theory of Justice, a Teoria da Justiça, resultante direto do sucesso da campanha pelos Direitos Civis. Herdeiro da melhor tradição liberal, que principia com Locke, passando por Rousseau, Kant e Stuart Mills, Rawls debruçou-se sobre um dos mais espinhosos dilemas da sociedade democrática: como conciliar direitos iguais numa sociedade desigual, como harmonizar as ambições materiais dos mais talentosos e destros com os anseios dos menos favorecidos em melhorar sua vida e sua posição na sociedade? Tratou-se de um alentado esforço intelectual para conciliar a Meritocracia com a idéia da Igualdade.

A resposta que Rawls encontrou para resolver essas antinomias e posições conflitantes fez história. Nem a social-democracia européia, velha de mais de século e meio, adotando sempre um política social pragmática, havia encontrado uma solução teórica-jurídica para tal desafio. Habermas, o maior filosofo alemão do pós-guerra, considerou-o, o livro de Rawls, um marco na história do pensamento, um turning point na teoria social moderna, abrindo caminho para a aceitação dos direitos das minorias e para a política da Affirmative Action , a ação positiva. Política de compensação social adotada em muitos estados dos Estados Unidos desde então, que visa ampliar e facilitar as possibilidades de ascensão aos empregos públicos e aos assentos universitários por parte daquelas minorias étnicas que deles tinham sido até então rejeitadas ou excluídas. Cumpre-se dessa forma a sua meta de maximize the welfare of society's worse-off member, de fazer com que a sociedade do Bem-estar fosse maximizada em função dos que estão na pior situação, garantindo que a extensão dos direitos de cada um fosse o mais amplamente estendido, desde que compatível com a liberdade do outro. Se foi o projeto da Grande Sociedade quem impulsionou a teoria de Rawls, suas proposições, difundindo-se universalmente, terminaram por lançar as bases dos fundamentos ético-jurídicos do moderno Estado de bem-estar Social, vinte ou trinta anos depois ele ter sido implementado.

A sociedade justa

De certo modo Rawls retoma, no quadro do liberalismo social de hoje, a discussão ocorrida nos tempos da Grécia Antiga, no século 5 a.C., registrada na "República" , de Platão. Ocasião em que, por primeiro, debateu-se quais seriam os fundamentos de uma sociedade justa. Para o filósofo americano os seus dois pressupostos são: 1) igualdade de oportunidade aberta a todos em condições de plena eqüidade e: 2) os benefícios nela auferidos devem ser repassados preferencialmente aos membros menos privilegiados da sociedade, os worst off, satisfazendo as expectativas deles, porque justiça social é, antes de tudo, amparar os desvalidos. Para conseguir-se isso é preciso, todavia, que uma dupla operação ocorra. Os better off, os talentosos, os melhor dotados (por nascimento, herança ou dom), devem aceitar com benevolência em ver diminuir sua participação material (em bens, salários, lucros e status social), minimizadas em favor do outros, dos desassistidos. Esses, por sua vez, podem assim ampliar seus horizontes e suas esperanças em dias melhores, maximizando suas expectativas.

Para que isso seja realizável numa moderna democracia de modelo representativo é pertinente concordar inclusive que os representantes dos menos favorecidos (partidos populares, lideranças sindicais, minorias étnicas, certos grupos religiosos, e demais excluídos, etc..), sejam contemplados no jogo político com a ampliação da sua deputação, mesmo que em detrimento momentâneo da representação da maioria. Rawls aqui introduz o principio ético do altruísmo a ser exigido ou cobrado dos mais talentosos e aquinhoados - a abdicação consciente de certos privilégios e vantagens materiais legítimas em favor dos socialmente menos favorecidos.

Há nisso uma clara evocação, de origem calvinista, à limitação dos " direitos do talento", sem a qual ele considera difícil senão impossível por em pratica a equidade. Especialmente quando ele lembra que uma sociedade materialmente rica não significa necessariamente que ela é justa. Organizações sociais modestas, lembrou ele, podem apresentar um padrão de justiça bem maior do que encontra-se nas opulentas. Exemplo igual dessa " secularização do calvinismo" visando o apelo à concórdia social, é a abundância no texto de Rawls de expressões como, além do citado altruísmo, "benevolência", " imparcialidade", "desinteresse mútuo", "desejos benevolentes", "situação eqüitativa", " bondade", " objeção de consciência", etc...

Worst off - Os socialmente desfavorecidos - Devem ter suas esperanças de ascensão e boa colocação social maximizadas, objetivo atingido por meio de legislação especial corretiva, reparadora das injustiças passadas.

Better off - Os mais favorecidos - Devem ter suas expectativas materiais minimizadas, sendo convencidos através do apelo altruístico de que o talento está a serviço do coletivo, preferencialmente voltado ao atendimento dos menos favorecidos.

John Rawls: equidade e igualdade

Se a pregação de Rawls a favor da limitação dos benefícios obtidos pelos mais talentosos desgosta a maioria dos teórico conservadores (é injusto retirar do talentoso as vantagens legítimas adquiridas por ele), a questão da equidade sobrepor-se como um sucedâneo a igualdade, fere os princípios dos teóricos democráticos mais radicais. Aparentemente ele descarta a possibilidade de haver uma distribuição dos bens igual para todos. Rawls aposta mais na eficácia equidade para aparar os feitos negativos da desigualdade.

Por mais que a sociedade liberal tenha proclamado ao longo dos tempos seu em empenho em favor da igualdade de oportunidades para todos, e na difusão universal dos direitos de cidadania, sabe-se que, na prática isso não ocorre. Um simples vislumbre da paisagem social existente na maioria dos países democráticos confirma que as afirmações pró-igualdade, alardeadas por todos, prendem-se mais à retórica do que à realidade. Evidentemente que pode-se superar isso, e a história assim o demonstrou, pela aplicação revolucionária de uma igualdade imposta pela violência ou pelo terror político, na qual todos terão acesso as mesmas coisas. Isso, porém, além de ter-se verificado inviável ou impraticável numa sociedade democrática, comete uma outra injustiça, visto que desconsidera as vantagens legitimas obtidas pelos talentosos e os bem sucedidos em geral.

Equidade e altruísmo

A correção das injustiças sociais, por conseguinte, somente poderia advir da prática de uma politica visando a equidade, claramente localizada e pontual. Não de uma revolução social. Verificado-se qual o setor social menos favorecido (em razão da raça, sexo, cultura ou religião), mecanismos legislativos compensatórios entrariam em ação para buscar reparar, pela lei e com o consentimento geral, as injustiças cometidas. É certo que isso requer a suspensão temporária dos direitos de todos os demais, especialmente dos bem sucedidos, mas, como acreditava Kant, a Billigkeit, a equidade deve ser, antes de tudo, reivindicada no tribunal da consciência e não nos tribunais comuns. A sociedade num todo avançaria então gradativamente identificando aqui e a ali as correções sociais a serem feitas, agindo cirurgicamente no sentido de superá-las pela lei , aplicada simultaneamente ao apelo constante ao altruísmo dos better off, não no sentido de uma inatingível igualdade absoluta, como era o desejo dos radicais socialistas, mas na direção da mais justa possível a ser alcançada dentro das normas de uma democracia liberal moderna..

Invertendo Platão

A sociedade justa para Platão era aquela que alocava cada um dos seus integrantes segundo suas aptidões verificadas (inteligência, coragem ou apetite), cabendo o seu governo aos mais qualificados: os filósofos. Por conseguinte, sua visão favorecia um regime dominado, digamos, dos mais técnicos, dos mais talentosos e inteligentes (comumente aceita-se de que Platão teria sido o pai da tecnocracia moderna). Rawls inverte tal propósito. Como vimos, uma sociedade realmente justa para ele, sem que se descurasse da importância dos talentosos, é aquela que funciona em favor dos destituídos.

Conclusão essa que choca-se frontalmente com a muito difundida concepção darwinista dos norte-americanos que divide a sociedade entre vencedores (winners) e perdedores (losers). Como poderiam eles aceitar - numa cultura que celebra o vencedor mais do que qualquer outra que se conheça - uma doutrina voltada preferencialmente a favor dos desvalidos, dos que não tiveram condições de seguir na competição, ou foram alijados dela, mesmo que o objetivo seja nobre visando corrigir um erro do passado? Seja como for,a Teoria da Justiça serve hoje como inspiração para a maior parte dos reformadores sociais em atividade..

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS
Read Comments

0 comentários: